Por Ayrton Freire e Júlio Rocha
No mês em que se vivencia o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres (dia 25), a Lei Maria da Penha, que completou 11 anos, considerada um marco para o enfrentamento da violência doméstica e reconhecida entre as melhores legislações do mundo sobre o assunto, sofre uma nova polêmica com o Projeto de Lei da Câmara (PLC 07/2016), que permite aos delegados aplicar medidas protetivas, hoje são exclusivas do Poder Judiciário. O texto já passou pela Câmara e Senado e aguarda sanção do presidente Michel Temer.
Se por um lado, segundo magistrados, promotores e defensores, essa alteração pode enfraquecer os direitos conquistados, acarretando inconstitucionalidade; por outro, pode gerar avanços e ampliar a celeridade das medidas protetivas, de acordo com delegados. A reportagem do PORTAL NO AR ouviu os representantes dos Poderes, órgãos e instituições para avaliar a aplicação da Lei Maria da Penha no contexto potiguar, como também as implicações futuras, caso o texto de lei seja sancionado.
Titular de Delegacia Especializa de Atendimento a Mulher (DEAM) da Zona Sul, Ana Paula Pinheiro esclareceu a realidade de combate à violência no cenário potiguar, diante de seu papel enquanto autoridade policial.
“Desenvolvemos aqui um trabalho mais humanizado de atendimento à vítima, além de investigações e flagrantes da atividade policial. As delegacias são os locais mais lembrados quando as mulheres buscam medidas protetivas de urgência, por terem atendimento mais sensível e de ação efetiva”, enfatizou Pinheiro.
A delegada apontou como maiores desafios a falta de estrutura e de efetivo policial. Atualmente as delegacias especializadas estão localizadas em Natal (2), Parnamirim (1), Mossoró (1) e Caicó (1), e funcionam das 8h às 18h, de segunda a sexta.
“Temos dificuldade também quanto ao horário de funcionamento, é o sonho nosso e da sociedade a ampliação para 24 horas e a criação de mais delegacias especializadas, hoje são apenas cinco. Os horários noturnos e de madrugada são os mais frequentes de violência contra a mulher e hoje são registrados nas delegacias de plantão, mas esperamos que, com o concurso que está para sair, a situação de falta de efetivo possa ser revista”, explicou.
Aumento de inquéritos
Ana Paula está a pouco mais de um ano a frente da DEAM Zona Sul e constatou o aumento de inquéritos policiais de violência contra a mulher. “Temos notado uma demanda crescente de inquéritos. Em 2015, houve cerca de 700; ano passado, 800; e até outubro de 2017, foram quase 700 novamente, acredito que até o final do ano o total seja ainda superior. Os números de violência física, estupro, assédios e ameaças têm crescido, mas há também uma conscientização maior da mulher na procura pela autoridade policial”, alertou a delegada.
Sobre a Lei Maria da Penha, Ana Paula considerou esta como uma luta árdua de várias mulheres e a possibilidade de concessão das medidas protetivas de urgência, um avanço legislativo e uma importante arma no combate à violência.
Mudanças ampliariam defesa da mulher
Ao reportar-se à polêmica alteração, em especial ao artigo que prevê a concessão de medidas protetivas pela autoridade policial, a delegada é enfática na defesa. “Seria um grande avanço, só quem ganhariam seriam as mulheres. É um instrumento que amplia a defesa da mulher e não entendemos a contrariedade das entidades. A mudança permite que as delegacias possam ser reforçadas com pessoal capacitado de outros órgãos, diminuindo nosso déficit”, disse.
A delegada ainda ressaltou, “os delegados só poderiam adotar medidas específicas, que em 24 horas seriam encaminhadas aos juízes para serem chanceladas ou revogadas pelo Judiciário. Dessa forma não seria inconstitucional, pois continuaria o juiz com a palavra final. É preciso a celeridade das medidas protetivas pelos delegados, visto que quando as mulheres vêm registrar BO é porque estão em situação de risco iminente”.
O argumento de defesa também é compartilhado pelo delegado-geral da Polícia Civil, Correia Júnior, “é na delegacia que se começa a fazer justiça, com a mudança da lei vamos ter um instrumento de auxílio à vítima logo após a oitiva com o delegado que poderá determinar a adoção de medidas de urgência. Precisamos aumentar a estrutura, mas a própria lei dispõe na sua alteração que a polícia pode requisitar serviços e pessoal de outros órgãos”, argumentou.
Secretaria demonstra apoio
A Secretária de Políticas Públicas para as Mulheres (SPM-RN), Flávia Lisboa, defendeu o argumento dos delegados e demonstrou apoio por meio de nota, durante o trâmite da PLC 07/2016.
“O PLC 07/2016 trata do deferimento imediato de algumas medidas protetivas de urgência, na própria Delegacia de Polícia, à mulher vítima de violência, visando a evitar a espera do prazo de 96 horas para ver cessada a violência que esteja sofrendo em casa”, disse a secretária.
Ainda segundo Flávia Lisboa, “a SPMRN tem como missão promover a igualdade entre os gêneros e combater todas as formas de preconceito, visando à promoção dos direitos da mulher para a eliminação das discriminações e abusos que sofrem, razão pela qual concordo com o deferimento imediato das medidas protetivas de urgência na própria Delegacia de Polícia”, finalizou.
OAB aponta retrocesso e ilegalidade
A presidente da Comissão da Mulher Advogada, Lucineide Freire, alegou que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) emitiu nota técnica apontando inconstitucionalidade e retrocesso caso a Lei Maria da Penha venha a ser alterada.
“Quando a Lei foi criada em 2006, houve um consórcio entre a sociedade civil organizada e instituições. Nós buscamos fazer com que essa lei seja consolidada. Ano passado levantaram esse projeto de lei complementar, a OAB emitiu nota técnica contra ele e estivemos presentes no CNJ, porque a lei é perfeita. Contudo, são necessários a sua estruturação e o cumprimento pleno do que é estabelecido. Se a lei diz que as mulheres têm que ser preferencialmente atendidas por policial do corpo feminino, nós entendemos que deve ser obrigatoriamente. Então a ideia da mudança é tão somente a medida protetiva, mas esta funciona muito bem. Hoje quando um delegado requer essa medida, o juiz analisa em 24 horas e, em muitos casos, em até três horas por email. É só o tempo de o juiz ver e despachar, não tem essa desculpa de celeridade, não teria sentido”, questionou Lucineide.
Ainda segundo a advogada, uma nova atribuição iria comprometer a atuação principal da delegacia, que é investigar crimes. “Outra questão é que as elas já têm o seu papel essencial, principalmente as que são especializadas no atendimento a mulher, de investigar denúncias e registros de ocorrências. No RN, temos apenas cinco delegacias especializadas, que não funcionam initerruptamente, fecham às 18h, mas é principalmente no horário noturno que as mulheres são ameaçadas, vitimizadas e mortas. Nos finais de semana, os casos aumentam”, afirmou Lucineide, que, enquanto presidente da comissão da OAB, faz visitas às delegacias.
A advogada também asseverou que o feminicídio – assassinato de mulheres motivadas pelo gênero – deveriam ser investigados pelas delegacias especializadas. “Hoje na delegacia há uma carência absurda de estrutura, ainda que tenham delegadas habilitadas e de grande competência, falta até material para inquéritos. Os atendimentos não são da forma como diz a lei nas delegacias”, afirmou a advogada.
“Estaremos estagnando ou em retrocesso”
Sobre a polêmica mudança que pode ser sancionada pelo presidente Temer, a advogada apontou sua ilegalidade. “É algo muito grave em termos de lei. Quem tem o direito de tolher a liberdade de ir e vir é o Poder Judiciário, a própria Constituição Federal preleciona que o Judiciário que tem o direito de apreciar todas as questões inerentes à lesão e violência e direito de ir e vir. Não tem o menor sentido, estaremos estagnando ou em retrocesso. O Artigo 22 da Lei Maria da Penha diz que é do juiz esse poder”, salientou.
Segundo Lucineide, a mudança legislativa também pode tirar o direito de a mulher buscar livremente o Judiciário. “Não vamos admitir qualquer situação que prejudique a mulher. Solicitamos ao governo que não a sancione. Se for legitimada não seremos nós a prejudicar, mas a própria situação, uma vez que a partir do momento em que ficar na delegacia, não tem o apoio do Judiciário.
Ministério Público conta com Núcleo de Apoio à Mulher Vítima de Violência
O Ministério Público conta com duas promotorias específicas em Natal para mover denúncias em casos de violência contra a mulher, e, a partir de janeiro, será criada a terceira. Há também promotorias em defesa da mulher em Parnamirim e Mossoró. “Além das especificas, todos os promotores criminais do interior trabalham com violência doméstica, abrangendo todo o estado”, explicou a promotora Érica Canuto, coordenadora do Núcleo de Apoio à Mulher Vítima de Violência Doméstica e Familiar (NAMVID).
O NAMVID foi criado em 2012, pelo Ministério Público em convênio com o Ministério da Justiça, para dar apoio às promotorias. “Desenvolvemos ações também integradas, como visitas domiciliares a mulheres em situações de risco para analisar se é preciso adequar as medidas protetivas, bem como saber se há crianças e adolescentes no contexto da violência doméstica. Atendemos também a demanda espontânea, ou seja, a mulher que sofrer algum tipo de violência pode nos procurar para denunciar e buscar informações sobre os seus direitos”, detalhou Érica.
O núcleo desenvolve ainda projetos, entre eles, o “Grupo Reflexivo de Homens”, que tem o objetivo de reeducar do agressor. “São dez aulas para que o agressor possa ser reestabelecido, a partir da compreensão sobre o que são atos de machismo, formas de violência e a Lei Maria da Penha, a fim de que não pratique novamente violência contra a mulher. Esse grupo existe há cinco anos e nenhum dos homens que passou pelo ele reincidiu no crime”, falou a promotora.
Érica Canuto também destacou o projeto “Guardiã Maria da Penha”, em que as mulheres atendidas com as medidas protetivas comparecem nas quartas-feiras, de forma espontânea, “para conhecer todos os direitos adquiridos na rede de atendimento, nos centros de referência, abrigos, e, em seguida, realizar atendimento individual, tendo por base cada situação de risco. Da mesma forma, identificamos se há filhos no contexto de violência para encaminhá-los aos acompanhamentos psicoterápicos”, afirmou.
Em mais de 70% dos casos de violência contra a mulher, há presença de filhos
A coordenadora do NAMVID destacou uma estatística importante para o contexto da violência contra a mulher no ambiente familiar potiguar. “Mais de 70% dos casos de violência doméstica têm a presença de crianças e adolescentes, seja colocando a mãozinha no ouvido e chorando, seja presenciando e ficando na frente da mãe ou até apanhando. Eles também precisam de atenção, pois sofrem hoje e no futuro poderão reproduzir o que viveram”.
O que se constata, segundo a promotora, em muitas ocorrências de agressores é o relato de que, quando mais novos, viram ou também foram vitimas de violência doméstica. “As crianças que precisam de acompanhamento já são encaminhadas para atendimentos prioritários a partir da articulação da rede”, destacou.
Lei Maria da Penha foi uma mudança de paradigmas
Ao analisar os 11 anos da Lei Maria da Penha, a promotora considerou uma mudança de paradigmas. “Tirou do contexto exclusivamente privado de ‘briga de marido e mulher ninguém metia a colher’ para o reconhecimento de que agressão é uma grande violação dos direitos humanos. Em 2013, a ONU havia divulgado que mais de 1/3 das mulheres em todo o mundo já havia sofrido algum tipo de violência, e que esse número poderia crescer. A OMS afirmou que vivemos uma situação de epidemia da violência de gênero”, alertou.
Feminicídio cresce mais de 50% em 2017
Segundo dados do Observatório da Violência Letal Intencional (OBVIO), de 1 de janeiro até o dia 13 de agosto, semana de aniversário da Lei da Maria da Penha, foram registrados 89 feminicídios no RN no ano de 2017, refletindo um aumento de 53% em relação a 2016, que indicou 58 casos. Em 2015, foram 65.
Érica Canuto destacou ainda que o feminicídio trata-se de uma “morte anunciada”, que pode ser evitada a partir de denúncias ao Ministério Público. “O principal motivo do feminicídio é a violência doméstica, e isso é evitável a partir daqui do MP. Feminicídio é matar a mulher por gênero ou contexto violência doméstica, morte anunciada. Ninguém mata do nada, vai dando sinais, aumentando proporções até tirar a vida da mulher”, detalhou.
Alteração na Maria da Penha viola o Estado de Direito
Ao adentrar na polêmica alteração do texto de lei, Érica Canuto apontou quais seriam os reais problemas para que a lei fosse implementada plenamente no Rio Grande do Norte.
“Nossa realidade nas delegacias é de falta de estrutura, poucas especializadas e que já não atendem a demanda existente de investigar crimes e entregar inquéritos no prazo da lei de até 30 dias ao Poder Judiciário, o que vem acontecendo atualmente com muitos meses e até anos de atraso, como no ano passado que recebemos inquéritos ainda de 2009. É essencial para as delegacias cumprir o papel de investigar crimes”, enfatizou Érica.
As promotoras Luciana Assunção e Gilcilene Sousa, da 68ª Promotoria de Justiça de Natal e atuantes na área de violência contra a mulher, relataram a reportagem do PORTAL NO AR que inclusive foi aberto um inquérito civil para apurar o atraso no envio de investigações. “Há recorrentes atrasos desde a tomada de depoimento das vítimas ao prazo de envio de inquéritos para que possamos fazer a denúncia. O que deveria ser feito em 48 horas, chega com vários meses de atraso. Como as delegacias poderiam ter nova função, se o basilar hoje não está sendo cumprido?”, relatou Gilcilene.
Durante a entrevista, as promotoras mostraram a nossa equipe diversos pedidos de medidas protetivas, que ultrapassam o prazo legal, vindos das delegacias.
O Poder Judiciário, de acordo com a promotora Érica Canuto, tem outro papel: julgar se vai haver restrição de liberdade ou não, no que é chamado de reserva de jurisdição presente na Constituição. Somente o juiz investido é que pode restringir liberdades fundamentais, determinar busca e apreensão, fazer escuta telefônica, entre outras decisões.
“Quando o delegado for autorizado a dar medida protetiva, ele poderá dar qualquer outra sem qualquer autorização judicial, quebra de sigilo, recolhimento noturno, abrindo precedente completo. Viola o Estado de Direito, garantia de todo cidadão. Queremos a proteção da mulher dentro da lei. Os delegados não teriam condições de assumir mais esse papel”, desenvolveu Canuto.
Medidas protetivas em até três horas
Sobre a celeridade das medidas protetivas, a coordenadora do NAMVID explicou que a realidade informatizada atualmente já supre essa demanda. “Hoje o prazo para deferimento de medidas protetivas no estado ocorre em horas, desde que seja enviado pela delegacia no prazo hábil. A lei diz que é em até 48 horas, mas a realidade do nosso estado é que, enviando o pedido de medida protetiva, em menos de 3 horas, o juiz já dá o despacho. Nunca alguma mulher morreu ou foi agredida no Rio Grande do Norte dentro desse prazo de análise, então não tem argumento, já está sendo concedida no prazo certo pela autoridade competente”, reforçou.
Além das delegacias, o Ministério Público, por meio das promotorias especializadas, também pode solicitar medidas protetivas ao juiz. “Aqui nós pedimos a medida protetiva, as mulheres podem procurar o MP para fazemos o pedido ao Judiciário de forma eletrônica. Não temos essa realidade prejuízo de atraso na concessão de medidas no nosso estado”, pontuou.
Estado registra 15 mil processos da Lei Maria da Penha
A maior conscientização das mulheres e o apoio de instituições tem feito crescer o aumento de processos no estado.
“Houve um incremento muito grande, pois as mulheres percebem que a lei é forte, pode confiar. Aqui no estado há mais de 15 mil processos da Lei Maria da Penha. Número que pode ser ainda maior devido a subnotificação: a procura só pelo posto de saúde, ou psicólogo, ou advogado para o divórcio, não a procura pela polícia ou Justiça”.
Judiciário do RN busca rapidez e efetividade no combate à violência
O presidente do Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid), Deyvis Oliveira Marques, que também é responsável pela Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar no Tribunal de Justiça do RN e titular do Juizado de Violência Doméstica em Parnamirim, elencou os avanços da Lei Maria da Penha.
“A lei nesses 11 anos trouxe a especialização dos juízes e, paulatinamente, têm sido criadas novas varas específicas. Teremos mais uma em novembro. Em Natal serão três, uma em Mossoró e uma em Parnamirim. É um bom número em relação ao tamanho da nossa demanda no estado”, explicou Deyvis.
Sobre a especialização do Judiciário, Deyvis Marques falou a respeito das ações implementadas no Rio Grande do Norte.
“Além da criação da nova Vara, foi lançada no primeiro semestre a Medida Protetiva Eletrônica com o objetivo de encaminhar os pedidos das delegacias e MP para o Judiciário em tempo real, por email, para que o juiz possa ter conhecimento e acolher ou não o pedido”, reforçou o juiz.
O Tribunal de Justiça do RN também desenvolve três vezes por ano o projeto Justiça pela Paz em Casa, de autoria da ministra do Supremo Tribunal Federal, Carmem Lucia. “Esse projeto visa a agilizar o andamento dos processos de violência contra a mulher, três vezes ao ano. Na semana do Dia internacional da Mulher, no mês da Maria da Penha e no mês internacional não violência contra a mulher. É uma semana em que juízes, não só os de varas específicas, mas todos os juizados, dão andamento prioritário aos processos de violência contra a mulher, além de realizar ações paralelas de conscientização articuladas a outras instituições”, explicou Deyvis.
Na última edição do projeto em agosto, foram realizadas 619 audiências com 811 atos proferidos pelos juízes e dois júris de feminicídio.
Outro projeto em andamento, em parceria do Governo do Estado, TJRN e universidade, é o aplicativo Nísia, em fase de edital de concorrência e com a finalidade de acompanhar o andamento das medidas protetivas.
Conscientização maior
No âmbito do Judiciário, também são desenvolvidas inciativas de conscientização e reflexão de agressores e vítimas, entre as quais, “Reconstruindo Self”, realizada no município de Parnamirim. “É o atendimento dos agressores de processos com medidas protetivas por meio de um grupo reflexivo para que não haja reincidência de crimes de violência contra a mulher”, detalhou.
Também em Parnamirim é realizado o “Lumiar”, em parceria com a Prefeitura, “direcionado às mulheres, pois muitas voltam para o agressor. Assim, é feito o acompanhamento delas para que se empoderem e sejam orientadas, pois as medidas protetivas dependem igualmente do comportamento delas, que não podem se colocar novamente em situações de risco”, lembrou o juiz.
Em fase de implantação, englobando o contexto familiar, o TJRN desenvolve o “Laços de Família”, baseado em práticas restaurativas em Natal. “Voltado para casos de violências de companheiro para companheira, tendo filhos em comum. É para casos específicos, para que os crimes não se tornem mais graves. Às vezes separamos o marido da mulher, mas continua o contato com os filhos, o que precisa ser regulamentado. Estabelecer uma relação harmoniosa para fins de guardar interesses dos filhos. Trata-se de um projeto multidisciplinar e mais complexo”, destacou Deyvis Marques.
Sobre o aumento de volume de processos da Lei Maria da Penha, o presidente do Fonavid acredita que é fruto da maior consciência e credibilidade. “É um aumento de consciência e credibilidade, pois sabem que podem recorrer, têm conhecimento da lei e acreditam no Judiciário, que conhece o contexto social e cultural da mulher com olhar diferenciado e coordena projetos nas áreas, articulando-se a outras instituições. O objetivo é mudar uma cultura de violência até chegarmos um dia que a lei não seja mais necessária”, disse o magistrado.
Sociedade tem papel fundamental
Na avaliação do magistrado, é importante a participação de todos os setores para dar agilidade aos processos: Ministério Público, Defensoria e sociedade que participa como testemunha.
“Então se a sociedade civil não comparece, prejudica o andamento de um processo e, por consequência, dos outros. O juiz terá que adiar e determinar uma condução coercitiva, gerando atrasos e prejuízos. Não pode prevalecer aquela história de que ‘em briga de marido e mulher ninguém mete a colher’, infelizmente isso ainda se reflete no processo. A testemunha no dia da audiência não comparece, mas além de ser obrigada, ela tem um dever cívico para que a justiça seja feita”, salientou Deyvis.
Alteração enfraquece lei com insegurança jurídica
Ao comentar o PLC 07/2016, o juiz tem opinião semelhante ao MP e a OAB, na reprovação da autorização do poder de concessão de medidas protetivas diretamente pelos delegados de polícia.
“Se existem falhas são da aplicabilidade, e não de alteração. No Brasil temos a cultura de fazer modificações em leis a todo tempo, isso gera uma insegurança jurídica e cria uma falsa percepção dos problemas. Hoje as delegacias que recebem as mulheres têm o prazo de 48 horas para colher o depoimento da vítima de imediato e o mínimo de provas para enviar ao juiz por meio da medida protetiva eletrônica. O juiz tem mais 48 horas para conceder ou não a medida, mas aqui no estado fazemos em menos de 24 horas de forma desburocratizada”, afirmou o magistrado.
Ainda segundo o juiz, a própria lei atualmente já conta com mecanismos de defesa da mulher vítima de violência, enquanto a decisão é tomada pelo juiz. “A lei já estabelece algumas medidas que a autoridade policial pode tomar de imediato, entre as quais, o abrigamento em local seguro, o acompanhamento da vítima para retirada dos pertences na casa, ou encaminhamento da mesma para atendimento assistencial médico para fazer o laudo”, reforçou.
Deyvis Marques também evidenciou a necessidade de a apreciação de medida cautelar ser feita pelo Judiciário. “Essas medidas restringem direitos da parte contrária, o que só pode ser determinado pelo Judiciário, o que é próprio de um Estado Democrático de Direito previstos na Constituição Federal, assegurando garantias mínimas ao cidadão como o direito de ir e vir, da inviolabilidade do domicílio. Isso restrito somente ao Judiciário como cláusula pétrea”, defendeu.
Para o juiz, uma possível sanção que altere os dispositivos da Lei Maria da Penha abriria um precedente perigoso para o Estado de Direito.
“Se essa alteração vier a ser aprovada, possivelmente sofrerá uma ação de inconstitucionalidade no Supremo e isso fragiliza a lei, que já passou por uma luta muito difícil para sair, não foi do dia para noite. Essa alteração está sendo lançada sem qualquer discussão, correndo risco de ser totalmente desestruturada, subverter a ordem jurídica e fora que esses argumentos jurídicos são exercidos do ponto de vista fático e prático. A função precípua de um delegado de polícia é investigar, apurar crimes. Na medida protetiva, o delegado tem que enviar para o juiz e seguir na investigação do crime, que em seguida vira um inquérito a ser encaminhado para a Justiça”, alertou.
Para reforçar os argumentos contrários, Deyvis mostra a dura realidade potiguar. “A realidade é que muitos inquéritos estão parados. Apesar de termos bons delegados, há uma grande carência de pessoal e estrutural para suprir a demanda. As delegacias especializadas não funcionam 24 horas, nem finais de semana. Na Justiça temos plantões em todos os dias, de domingo a domingo. Se não consegue em todo o país dar celeridade aos inquéritos, as delegacias vão comportar nova função? Para conceder medida protetiva imediata, os delegados teriam também que intimar o agressor, há estrutura para isso? A viatura que seria para investigar os crimes seria deslocada para intimações? Ao invés de dar celeridade, prejudicará ainda mais”, concluiu.
Defensoria aponta erros de legalidade e constitucionalidade
A defensora pública, Ana Lucia Raymundo, titular do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem/Natal), também manifestou opinião ao PORTAL NO AR sobre a possível alteração da Lei Maria da Penha.
“No nosso entendimento há defeitos de constitucionalidade congênitos e insanáveis, que buscam sem amparo do poder constituinte uma modificação profunda nas atividades policiais em detrimento das atribuições exclusivas do Poder Judiciário. Padece dos vícios de constitucionalidade e de legalidade. Caso ela venha a ser promulgada, há de se mudar também a Constituição para dar aos delegados esse poder que está sendo retirado do Judiciário”, afirmou a defensora.
Ana Lucia segue o posicionamento nacional da Defensoria Pública. “O direito da vítima tem que ser preservado, mas o direito de todos do livre ir e vir também. Na Defensoria atuamos dos dois lados, tanto na assistência à vítima como na defensa do agressor, mas estamos propondo uma visão imparcial e estritamente legalista do que está posto”, destacou.
No âmbito da Defensoria, são realizadas várias ações de conscientização das mulheres, entre as quais, a “Sala Lilás”, local destinado a atendimento especializado para vítimas de violência. Além do projeto “Mulheres Viver com Dignidade” e a metodologia do “Violentômetro”, que aponta os níveis de violência e quando a mulher deve pedir ajuda.
“O que precisamos não é uma alteração legislativa, mas sim o fortalecimento da rede de proteção. Acolhimento a essa mulher para que veja a possibilidade de sair dessa violência e reconstruir. Ainda há uma forte cultura machista principalmente no interior, devemos ampliar acesso à educação. O caminho é longo, ainda é uma violência invisível e que precisa ser descortinada cada vez mais”, defendeu.
E o que diz a própria Maria da Penha?
A farmacêutica Maria da Penha, que dá nome à lei que pune a violência doméstica e familiar, criticou o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 07/2016 e pediu que o presidente Michel Temer vete as mudanças. Ela se manifestou em nota técnica assinada pelo instituto que leva seu nome em conjunto com 70 Organizações Não Governamentais (ONG´s) que atuam na defesa da mulher.
“Mudanças casuísticas na lei Maria da Penha colocam em risco uma proposta construída com o acúmulo das lutas dos movimentos de mulheres há mais de 40 anos e com minha própria história de vida. Por isso, eu peço, senhor Presidente Michel Temer, não sancione o PLC 07/2016”, suplicou a ativista.
Maria da Penha pede também o fortalecimento do combate à violência com mais recursos orçamentários e políticas públicas mais eficazes.
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